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sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Formação do Cânon Cristão

Marcião (81-160) nasceu em Sinope, no Ponto, às margens do Mar Negro, filho do bispo cristão do lugar, o qual o expulsou, ainda que não saibamos o real motivo. Rico dono de muitos navios. Transferiu-se para Roma por volta de 139, filiou-se à congregação romana, destinando uma quantia volumosa em dinheiro às suas obra de benemerência.
Entretanto, seu esforço no sentido de fazer com que a Igreja romana voltasse ao que ele considerava o Evangelho de Cristo e de Paulo resultaram na sua própria excomunhão, por volta de 144. Tendo a esta altura atraído muitos seguidores, fundou uma igreja separada.
Relativamente pequeno é nosso conhecimento sobre Marcião visto que seus trabalhos foram destruídos, ou perdidos, ou ambos. O que é conhecido da sua vida, obra e teologia são encontradas nas obras de seus opositores Justino Mártir (110-165), Ireneu (120-202), Epifanio (ca. 315-403) principalmente Tertuliano, que escreveu uma grande obra refutando as teses marcionitas, por volta de 207 d.C., e que se por um lado se reconhece sua grande habilidade e valor retórico, também se percebe um grau acentuado de arcaísmo intransigente. A obra a qual se refere Tertuliano denomina-se “Antíteses” e que possivelmente devia se constituir em duas partes: uma histórica e dogmática, destinada a demonstrar como o autêntico Evangelho havia sido alterado, e outra exegética, para explicar o texto do Novo Testamento.

Marcião foi o mais sério e prático dentre os primeiros críticos do Cristianismo. Cheio de energia e zelo, ainda que inquieto, rude e muitas vezes excêntrico. “Marcião não era o tipo que devia ser considerado respeitador de tradições. Antes valia o contrário a seu respeito”. Ele antecipou em muitos séculos as grandes perguntas relacionadas à moderna crítica bíblica e ao cânon. Ele antecipou a oposição do racionalismo ao Antigo Testamento e às chamadas Epístolas Pastorais e o debate concernente ao Jesus Histórico.
Marcião mostrar os contrastes entre o Velho e o Novo Testamento. A sua grande questão foi a de relacionar um com o outro, pois sendo um anti-legalista entendia que o Evangelho tinha sido distorcido, tornando-se necessário recolocá-lo na simplicidade e verdade que Jesus havia anunciado. Marcião insistia que a Igreja havia obscurecido o Evangelho por procurar harmonizá-lo com as idéias do Velho Testamento. Ele e seus seguidores depois afirmavam que Jesus Cristo trouxera uma concepção de um Deus de amor, enquanto que o Deus do Velho Testamento era vingativo, criador de um mundo mal e da lei judaica, portanto devia ser rejeitado pêlos cristãos; o Deus de amor nada tinha a ver com a lei, existindo uma diferença absoluta entre justiça e misericórdia, entre ira e graça. Para ele não era pela fé na morte de Jesus que o homem é salvo, mas pela fé num Deus revelado por Jesus e isso era a negação de um dos aspectos básicos da linha tradicional da Igreja e com certo cunho modalista, afirmava que Jesus Cristo é outro nome do Deus bom. O “deus do Velho Testamento” conseguiu a sua crucificação, só que ele não morreu, tendo havido apenas uma ilusão. Para aqueles que insistem na separação entre alma e corpo, colocando o aspecto físico como mal e o espiritual como bom, é quase inevitável cair numa idéia docentista a respeito da natureza humana de Cristo.

O que mais encantava Marcião era o espírito de liberdade que ele encontrou nos escritos e ensinos do apóstolo Paulo, sendo que considerava maravilhosa a carta aos Gálatas. A sua concepção do cânon bíblico ficou muito simples: só o Evangelho de Lucas, eliminando dele o relato do nascimento e infância de Jesus, as dez cartas de Paulo sem as pastorais, rejeitando o resto do Novo Testamento e todo o Velho Testamento.

Ainda que muitos confundem as idéia de Marcião com o movimento Gnóstico, ambos permaneceram como linhas paralelas. A evolução destas suas idéias deu origem ao movimento marcionista que cresceu e perdurou por muitos séculos. Vestígios desse movimento foram encontrados em vários lugares no século sexto, abrangendo uma área geográfica da Mesopotâmia até a França, e o número de livros polêmico mostra quão difundido estavam suas idéias.

O posicionamento e questionamento de Marcião provocaram por parte da Igreja uma resposta imediata. Esta resposta pode ser vista através de algumas ações alavancadas pêlos líderes cristãos e que ainda hoje permanecem inalteradas.
O próprio estabelecimento de um Cânon do Novo Testamento tornou-se indispensável, visto que Marcião havia estabelecido o seu próprio Cânon. Os Evangelhos foram os primeiros a atingir reconhecimento geral. É importante notar que cedo os Cristãos decidiram incluir mais do que um Evangelho em seu Cânon, como uma resposta direta ao desafio de Marcião que incluía apenas Lucas. Pelo fim do segundo século, o núcleo do Cânon estava estabelecido: os quatro Evangelhos, Atos, e as epístolas de Paulo, incluindo as chamadas pastorais, rejeitadas por Marcião. Os livros mais curtos do Cânon, não alcançaram consenso até uma data bem mais tarde. Isto ocorre apenas na segunda metade do quarto século onde um consenso completo foi alcançado sobre quais os livros que deveriam ser incluídos no Novo Testamento. “Historicamente, a decisão da Igreja, de formar o cânone, estabelecendo uma norma para seu ensino e doutrina, determinou o fim da história da Igreja Antiga e o início da história da Igreja Católica Primitiva”.

Um outro desdobramento direto dos posicionamentos de Marcião é a elaboração do Credo Apostólico. Seu texto básico foi estabelecido, provavelmente em Roma, cerca do ano 150. E foi então chamado de "símbolo de fé."
O símbolo de fé era um meio de reconhecimento, tal como um símbolo que um general dava para um mensageiro de modo que o recipiente podia reconhecer um mensageiro verdadeiro. Igualmente, o "símbolo" estabelecido pêlos líderes cristãos deveria distinguir os crentes verdadeiros dos que seguiam outras diretrizes, particularmente o Gnosticismo e Marcionismo.
Um dos principais usos deste símbolo estava no batismo, onde era apresentado ao candidato uma série de três perguntas:
Você crê que Deus é o onipotente Pai?
Você crê em Jesus Cristo, o Filho de Deus, que nasceu do Espírito Santo e da virgem Maria, que foi crucificado sob Poncío Pilatos, e morreu, e ascendeu outra vez no terceiro dia, vivendo de dentre os mortos, e ascendido aos céus, está assentado à direita do Pai, e virá outra vez para julgar os vivos e os mortos?
Você crê no Espírito Santo, na igreja sagrada, e na ressurreição do corpo?Uma análise mais de perto claramente mostra que este Credo é direcionado contra os Marcionitas. Primeiro, o pantokrator é uma palavra Grega, usualmente traduzida como "onipotente", e literalmente como aquele que "tudo controla". A idéia aqui é que Deus controla tanto o mundo espiritual, quanto o mundo material sem qualquer distinção entre eles, que era uma tese de Marcião.

Dos primeiros movimentos internos do Cristianismo com certeza este protagonizado por Marcião foi um dos maiores em sua repercussão. Separou o Cristianismo de suas raízes históricas de modo radical. Ousou tocar numa doutrina fundamental do Cristianismo, a encarnação real de Jesus; não apenas desautorizou o Antigo Testamento, como teve a ousadia de colocar Deus no banco dos réus.
Tudo isto pode parecer inverossímil nestes nossos dias, mas em seu contexto histórico próprio havia muitas justificativas para protesto de tal sorte. A voz destoante de Marcião atendia na verdade a um anseio crescente contra toda espécie de legalismo, que estava agonizantemente tentando sobreviver incubado dentro do Cristianismo.
É muito cômodo “crucificarmos” Marcião, o difícil mesmo é termos a mesma ousadia que ele teve de ir contra a maioria e defender suas idéias. O Cristianismo com certeza não seria o que é e bem provavelmente não chegaria tão longe quanto chegou sem os “Marciãos” que exigem uma auto-depuração continua.
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Cânon de Marcião : Lucas, Romanos, 1 Coríntios, 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, Colossenses, Filipenses, 1 Tessalonicenses, 2 Tessalonicenses, Filemom

BIBLIOGRAFIA
Dreher, Martin N. Coleção História da Igreja, v.1, A Igreja no Império Romano, ed. Sinodal, São Leopoldo, 2002.
Boutruche, Robert e Lamerle, Paul. Judaísmo e Cristianismo Antigo de Antíoco Epifânio a Constantino, ed. Pioneira, São Paulo, 1987.
Almeida, Joãozinho Thomaz de, As Marcas de Cristo na História dos Homens, edição do autor, Rio de Janeiro, 1989, pp.79-80.
Walker, Williston. História da Igreja Cristã, v.1, ed. ASTE, São Paulo, 1967.
Harnack, Adolf Von. History of Dogma, v. I, Published by Boston, Little, 1901, pp. 266-281.
Carrigan, Cky J. Marcion and Marcionite Gnosticism, 1996, mídia eletrônica: http://ontruth.com/marcion.html
Bradshaw, Robert I. Marcion: Portrait of a Heretic, 1998, mídia eletrônica: http://www.robibrad.demon.co.uk/Marcion.htm
The Catholic Encyclopedia, Volume IX, Online Edition Copyright © 2003 by Kevin Knight

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